Um dos meus interesses de estudo – ando a tentar reduzi-los a dois, mas não percebo bem como se faz – obriga-me a perder longas horas com o tema cultural (e político) do esquecimento, numa época, a nossa, que tem no topo da lista das doenças o Alzheimer, e, nas notícias mais recentes, uma constatação fácil de assimilar: “[Em Portugal] apesar do decréscimo da população, o número de pessoas com demência irá mais do que duplicar: de 193.516 em 2018 (1,88% da população) para 346.905 em 2050 (3,82% da população)”. É pelo menos o que refere o relatório divulgado pela Alzheimer Europe – apresentado durante um almoço-debate do Parlamento Europeu organizado por Christophe Hansen, eurodeputado do Luxemburgo.
As sociedades ocidentais têm absorvido o tema “memória” como um dos mais importantes, emergente, das preocupações culturais dignas de acentuação.
Esquecer, se por um lado contém uma faceta aliviadora – todo o período pós-traumático pode apressar a cicatrização quando o trauma original é afastado, ou pelo menos afastado das evocações e por vezes, preferencialmente, enterrado sob novos desafios da vida -, tem outra faceta que inquieta. Se de repente a memória do mundo subtrair os horrores do nazismo e de Hitler, do comunismo e de Estaline, das ditaduras portuguesa, brasileira, chilena, tantas outras, com os seus milhões de mortos e perseguidos, de descaracterizados e humilhados, já sem falar de outros momentos traumáticos do mundo do Trump atual à dama de ferro inglesa, do Bolsonaro de agora ao Franco do passado, se de repente a memória se esvair e ficar apenas o pequeno ecrã e a rotina dos motores de busca e dos seus algoritmos, uma etapa ainda pior do que aquela que vivemos estabelecerá a sua regra e fará de nós os seus escravos sem ação e alternativas.
É nesse quadro que nascem fenómenos, erros grosseiros na gramática coletiva, como a xenofobia e o racismo, que são brandidos por interesses que trazem sempre o que resta de uma memória de violência e o desejo de um novo mundo feito do esquecimento de todas as violências. Deem pão, cultura e estabilidade de forma igualitária a todos os povos e logo verão nascer a paz, a concórdia, o progresso, até a temperança.
Não nos preocupa, no tempo em que vivemos, nem a experiência nem a sensibilidade.
Não aceitamos o tempo – achamo-lo sempre pouco e fugidio – e não cumprimos os mais elementares rituais de iniciação e de passagem.
Os bebés pode ficar na sua cadeirinha a contemplar o ecrã do televisor, onde assimilam o sexo e a morte a uma velocidade cerebral que não tem paralelo com a capacidade de descodificar os mesmos elementos, e cedo saltam da cadeirinha para o andarilho das “consolas” e dos jogos, aprendendo a fecundar e a matar, sem grandes metáforas intermédias. Não ficam mais inteligentes quando adolescentes, jovens adultos ou mesmo adultos feitos – sabemo-lo bem -, nem mais rápidos no processo cognitivo apesar de alguns de nós acreditaram que “estas crianças já nasceram ensinadas”, outro erro infeliz da gramática dos dias – pois notem como falham o motor de busca por não saberem o que escrever, e muito menos o que buscar.
Pobres gerações. Usam um computador com a habilidade de um autómato, e desconhecem que alguém o programou para que o usem exatamente assim, com os mesmo mecânicos movimentos e a mesma pequena estimulação mental que nunca adquiriram. Pobres gerações a quem os ministérios obrigam ao êxito, escravizando professores com a ilusão de que menos exigência é menos sabedoria e melhor resultado. Pobres gerações; preparam-se mais facilmente para as bancadas dos adeptos e para as coloridas claques de pouco pensar e muito gritar do que para as sociedades que precisam de equipas unidas e capazes de jogarem em conjunto pelo melhor resultado do grande campeonato do planeta em que vivem(os).
Infelizes os que esquecem, sem nunca terem recordado. Infelizes os que aprendem seis palavras de ordem para gritarem até à exaustão -e nem uma só palavra, mesmo caótica e desordenada, que os ajude a traduzir-se e a ser, tanto consigo como com o outro.
Infelizes dos que desconhecem que só há uma raça, a humana, e uma única forma de sermos humanos.
Já agora: o suicídio não é proibido pela Lei, pelo menos não conheço muitos suicidas que tenham ido a tribunal. A ínfima percentagem da Humanidade que alimenta a esperança de um enquadramento legal para o seu fim, está apenas a ser delicada. O que haverá, de mais íntimo e individual, de menos «colectivo», que a morte voluntária de alguém? Vou reler Émile Durkheim.
Enfim, morremos todos. É a condenação amarga ao esquecimento.
Alexandre Honrado
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